Monday, November 10, 2008

Pescadores

mãos as quantas, nem sei
desfiz-me surpreso
mãos
que apertam (surdas)
o peito, que ofuscam
nutrem-se dos ardores
mãos
ocas, que só passeiam
percorrem, oco do mundo
incontáveis
inconstância
ânsia, sentí
sentí calor, suor
um tão pecaminoso pavor
amor!,
dias então
esses dias nossos tão iguais.

08 de novembro de 2008

Thursday, October 30, 2008

Vozes

para Lygia Fagundes Telles

Borgonha como antítese à vida, como minério: sólido. Quando eu enfio a cabeça e espero. Espero. Como para a dor, assim equivale o amor: a saudade é um ínfimo de misericórdia quando brande a espada, brande o caixão, brande tua mão qual seiva laboriosa, seiva de nossos pés...

Sorrí um corpo outro dia perto de casa
..........um corpo
enterrado nas mais copiosas angústias
onde a pele escorria no sangue lamacento
................................no peito turvo
............................na boca rasgada
........................na fala rouca
...................um hálito que grita
.................e grita
.................e grita..........

Foi quando ouví tua súplica pela última vez e tremí já envelhecendo.
Pois tu fala fala com perguntas: dois amigos, três irmãos e cinco inimigos são a tua família? São teu pão, tua prisão. Gloriosa vitória é meu mundo, é assim.

Perdí
Notei só o escuro
Nas asas quentes
Um pouco do sorriso
Porque ao te abraçar
Eu me cortava nos parcos beijos.

No lugar do rosto, uma rosa
que teimo em pisar.


abril de 2008

Meus novos hematomas

"Um pêndulo que nasce nos lembra o outro dia, onde tudo é doce e a manhã é longa e acolhedora. Meu cheiro transcende o papel, some por entre casas e outros becos desfazendo-se em bolero. Meus novos hematomas são chagas que me iludem, luzes que me cegam os instintos. E aquele velho senhor que tanto me desejava o bem, por onde anda? Não, eu só queria saber se o seu vício é maior que o meu, a dor..."

Jorge cai.

"Morre! E esconde bem os teus pecados para que os outros não percebam, talvez ainda consiga se salvar. Covardia rima muito bem com o teu nome, Jorge. Eu mesmo te erguiria, colocaria-te lá no topo só para ver a tua quedaque vem do ódio que que nutre por si próprio. O niilismo não te serviu muito, ao que parece."

- Quando sair feche a porta. Nesses tempos não me queixei muito do frio, mas seria bom ver-me trancado neste quaro escuro; sabe, cheio de caminhos. Tua presença, mesmo sendo desagradável, é muito importante para mim. Olha meus pulsos... fiz por ti.

- Deixa de ser tolo, nem ao menos sabe o que é amor! Olha, olha bem pra mim! Foge por que teima em se virar pra trás, erra como antes e se mata como a um inimigo.

- É porque você, Cássio, você não me enxerga, amaldiçoa esta casa mas não me deixa falar. Não cheguei aqui sozinho pra sozinho ficar.

- Claro que não porque eu te conhecí bem pior, meu caro. Tu me deve a vida

- Que vida? Pode me mostrar?! Esta prisão que me sufoca, esse mar insólito do qual me embriago com moléstias, ilusões, quantas alegrias, hein? Sabe o que ganhei quando um dia decidí largar tudo para te seguir? Nada! Fui estúpido. Busquei por respostas que talvez, não, talvez não, com certeza, respostas que com toda a certeza não me farão falta! É uma prisão, já disse isso? Uma prisão, um cemitério. Eu te odeio Cássio, tudo culpa tua!

Jorge continua:

"Eu vivo voltado para a palavra que me define, logruras e logruras numa interminável corrida entre cores que me circulam. Universos nossos tão pequenos... E minha vida? Ah, sei mais. Só um sol a me queimar."

- Mas escuta, tu mesmo se corrompe, é vil isso. Fizeste uma escolha - correta, por sinal-, e agora se arrepende por não mais sentir o chão, por ver tudo desmoronar. Esta é a mudança que tanto te assusta, Jorge.

- Não, o meu fim. Não queria me ver desta forma.

- Tu nunca se viu além do próprio reflexo.

- Me deixa, tira esse cobertor de mim. Já disse mais de uma vez que sou o que eu sonhei um dia e isso é o bastante pra mim; é, o que eu sonho, o que eu como e vomito. Certa vez, sabe? Certa vez acordei cantando com vontade de "ser". Você entende? Vontade de só "ser". Mas hoje, hoje transformei-me num lixo bem menos fértil que outrora.

- Só marcas.

- Não, são minhas chagas. Tempos que amava demais. Tempos que não voltam. Eu não aprenderia nem-

- Nem se eu gritasse...

- ...nem se eu gritasse. Cortes antigos mas a dor ainda é a mesma, nem sei se nesse tempo todo mudei em algo - não sinto nem essa mudança que você repete sempre. Sou fadado à derrota, Cássio. Desistí no meio do caminho... à derrota Cássio. À derrota.

Um que grita.

Corpos, luz e som
desejos altos
..............mas antigas vontades
Poder que tudo santifica
e satisfaz
...................................................como se
como se
..............nada mais me limitasse
Porque o que é fraco logo apodrece
...........................compaixão
desgraça
.................povo

- Sabe, continuo nessa ilusão por não cansar. Vejo um sol, desgraças e gemidos. Ninguém me esqueceu aqui, sozinho, sozinho vou? Corpo que canta, sopra, vontade de potência que ainda não me atrai. Aqui. Cássio? Abram as portas, por favor! E as janelas, mares, gaivotas que apenas voam, brisas e uma vista linda: tão perdida quanto um "quarto negro" cheio de hematomas. Chagas que gritam e me impedem de ser. Gritam, gritam a noite inteira. Um quarto tem chagas, escadas e corpos suados que me dão infinita vertigem. A bola pai, deixa-me tapar-te a boca com um beijo que rasteja sobre pedras e sentimentos alheios, sede de amor, aluguel de vidas - ainda há vida nesse corpo que não se mexe? Não sei, não consigo pensar direito nessa alegria toda, mas somos jovens apesar do que aquele velho diz, e por vezes teimamos em respirar a mesma demência. Pronto, abre os olhos e vê o mundo que fizemos pra você mas nunca mais me pergunte algo (poderia chamar de qualquer coisa por tão real). Não, nada de novo nestas páginas, e o amor, é maior que o teu corpo? Onde estavam para que não a vissem acordar? Amor. Faltam testemunhas com olhos e ouvidos. Os dentes, meus dentes me fazem rir da tua cara. As chagas gritam e me perfuram com desilusões. Saudade, teu mal é saudade. Hein? Tempos em que sorria, limito-me a repetir histórias que só invento; desculpa, sai e independe de mim. Nem mesmo sonhos parecem dizer-me algo. Cheques...

Inexistência que nos segue
Sórdido, sádico
Abalos e partidas, procuro algo que
me choque
Pois o mundo
nesse mundo
nada mais é orgânico.

São passos, infâmias, sussurros. Vomito algo que me corta por dentro, sinto em mim um fio de ouro prestes a romper, suspiro. Passos, continuo ouvindo passos.Neste ambiente é preciso prender a respiração e tampar os ouvidos, camuflar-se e esperar o momento certo para fugir. Mas alguém vem vindo, talvez seja Cássio, veio!Olha Cássio, meu corpo todo sangra por ti. Olha meu sorriso e diz que não sei o que é amor. Lúcido, sinto agora vontade de sair e viver. Cássio, fala comigo, por onde andou? Neste quarto só consigo ouvir a minha voz; nâo, há tantas outras!, olha só quantos gritam meu nome... Parem! Parem!

Sim, é Cássio quem vem para me levantar. Ele passa por entre cortes e respira forte. Respira e volta.

Ele respira e volta.

Monday, October 27, 2008

vermelho vermelho

Ah, se sou
assim,
assim suo, ouço
só coço
osso puro osso de
aço
casco (dá-me
'asco') sem "ser".
Por quê?

Assim sem fel
sem nenhuma desculpa pra
é... pra falar
assim sem nada
andando eu vou
e vou vou...

Assim vermelho
ver-me
(verme) lho
ver
ver (melhor)
(velho) eu
eu vou
vou vou...

25 de outubro de 2008

Sunday, October 05, 2008

um dia

pra descansar é tudo o que peço um dia pra acordar e ver a cara do filho dormir sem precisar levantar cantar como é bom cantar sem ter que se preocupar sem ter que acordar pra ver a cara do filho que finje dormir só pra não ter que sentir o cheiro da roupa suada do pai porque sim nem pra ouvir a voz rouca de meu pai eu sentia vontade de levantar da cama e sentia medo e continuava deitado mesmo sendo já tarde eu acordava tarde pra evitar me olhar tanto no espelho não ter que bater tanto na cara não ter que chorar tanto pelo tempo que passava voando e eu alí parado num quarto escuro farejando comida e se eu parecia quieto demais esse silêncio só mascarava segredos de uma vida tão medíocre que mereceria ser vivida eternamente assim como nair mãe de meu filho morreria pior pior eu acordei mais tarde ainda com dor de cabeça e uma preguiça de levantar quando ouví um barulho uma pancada é pancada vinda do banheiro mas tão discreta que passaria por qualquer outro menos a mim porque tenho um coração muito ciumento e tive então a certeza de que havia mais alguém lá porque nair mãe de meu filho era uma sonsa que nunca me enganou mas estava sozinha como sempre silenciosa como sempre me faz calar a boca e me arrepender de falar tantas injúrias porque faz tanto tempo que às vezes duvido mesmo se ouví aquilo e ela hoje parece uma santa sonsa mas acho que não teve barulho não isso é coisa aqui da cabeça de um velho que vive trabalhando de sol a sol sem reclamar de nada talvez eu só quisesse ter ouvido a pancada pra a minha vida fazer mais sentido a gente quer muita coisa na vida espera sempre que o dia de amanhã seja melhor e que a chuva chegue logo porque o gado não aguenta muito tempo mas um diazinho de folga é tudo o que peço não peço mais nada não quero mais nada talvez um copo d'água por favor como faz calor obrigado mas e o dia hein o dia que peço é pra ficar em casa e o senhor nem vai sentir a minha falta porque um dia é curto demais eu logo volto feliz por ter estado em casa o senhor não sabe como essas poucas horas são importantes talvez mudem a minha vida talvez salvem do inferno um miserável que detestava o próprio pai você acredita que eu não conseguia olhar na cara dele ou puxar uma conversa sem tremer e que vontade tem a gente numa hora dessas da vida ao ver tanta besteira que fizemos de querer voltar atrás e fazer diferente porque agora parece simples um abraço é simples um aperto de mão assim como o pedido de desculpas e com ele rir da vida porque a vida é simples pra quem quer e se eu não tivesse perdido tanto tempo deitado naquela cama velha essa conversa seria tão desnecessária quanto essa lágrima que cai você pergunta e eu digo que ela cai porque sim eu odiava o meu pai e me arrependo porque que mal faz um pai só por ser pai ser ausente sem dia para saudades nem comemorações mas verdade que não tínhamos muito o que comemorar porque nair desapareceu logo depois que resolví voltar pra casa e o dia que peço meu senhor é justamente pra conseguir voltar porque até agora não cumpri minha promessa quero sonhar com um dia melhor me perder em lembranças ao longo das horas sem me preocupar mais com a família se precisa ou não de mim se lembra ou não do meu rosto que já mudou tanto por já estar tarde e nem sinal de um sim pra o meu pedido mas eu tenho esperanças sou trabalhador nunca faltei um dia nunca cheguei atrasado nunca reclamei dessa porcaria de salário nunca me defendí dos insultos ou da exploração nunca lutei pelo que realmente merecí e quando me pediram os nomes dos baderneiros eu entreguei todos porque a minha fome era maior e como sofro aqui como trabalho nesse trabalho inútil que nunca dá sinal de prosperidade como me arrependo de ter saído de casa olha só o que conseguí juntar nesses anos todos fraturas ferimentos e ameaças sem fim pareço inofensivo demais para abutres tão acostumados com a carniça humana e se é de direito seu que um preto apanhe tanto aqui estão as minhas costas já que nunca pedí por respeito nem coisa alguma além desse maldito dia que eu usaria pra sumir daqui e ir pra bem longe com o meu filho mas não vou mais não quero mais nada de você amanhã estarei aqui às seis da manhã com a cara dura esquecerei de que preciso cuidar do meu filho abandonado para estar aqui como sempre

Saturday, October 04, 2008

Chuva

Passei o dia de joelhos
o dia inteiro
enfeitando o cabelo
e esperando a chuva passar. Chovia, então...
Mamãe desde cedo que dizia
que moça de respeito não podia ir
nesse tipo de festa, que só podia rezar e cozinhar.
E o resto? O resto o marido traz.
Que marido? O que há de te sustentar.
Pra quê um homem se sei me cuidar,
se sei plantar feijão?
Um homem pra ser pai de teus filhos, criatura.
Se eu tenho raiva de criança!...
Não vai me dar um neto?
Vou mãe,
desculpa.
E a chuva não passou.

03 de outubro de 2008

Friday, October 03, 2008

Status Quo

Um corpo que ajuda a vender.
A cortina abre mas eu sempre espero um pouco até ter consciência de onde estou. Rostos desconhecidos em sua maioria: pergunto-me para quem eu realmente faço isso: não é mais simples vaidade. O palco (antes tentador mas que agora não pulsa mais) é imenso, às vezes perco-me na sua escuridão, e ele na minha – neste espaço todo sempre fui o único objeto a se mover, percorro-o e todos olham atentos os movimentos ora suaves ora secos que projeto; não consigo fugir desta minha obstinação ao ser tão pontual: nos primeiros minutos já são usados alguns de meus trejeitos – é a forma que busquei para me absorver mais rápido. O palco é frio. Palco que engana, palco que eleva.
Mas a beleza também ajuda a vender.
Modelo o corpo (ou seria exatamente o contrário?) esperando que alguém pague por ele míseros trocados, míseros minutos de prazer roubados na correria sufocante de nossas vidas – não sobra tempo nem para eu lamentar essa tragicomédia. O rosto torna-se pálido mas tenho vontade de rir, de dançar uma valsa que para mim expresse a superfluicidade de momentos assim tão incompreensíveis; acaso, hoje encaro assim: apenas acaso.
Corpo meu?
Cortina que teima em fugir. O simples movimento de um braço me faz aliviar a existência, a perna balança no vazio e eu não consigo disfarçar o sorriso: extensão ilusória de mim mesmo? Danço como se a música fosse feita para aquele instante, como se fosse feita para mim – o artista é mesmo um ser muito ingênuo. Mas até onde vai o corpo? Em que proporções e em quais das tantas dimensões são usadas nessa brincadeira? Se sou eu quem determina o que vejo então a extensão de minha perna perfura o invólucro fino que é o sonho. Esse corpo tão enfeitado seria mesmo menor que o amor que finjo sentir quando me encontro aqui? Impossível!, o amor nunca conseguiu ser tão intenso quanto a mentira. Mas o que é o amor? Como deveria sê-lo? Não sei, pergunta pro Paulo Coelho.
Eu queria ter dito qualquer outro nome, berrar sentimentos estranhos, alheios, irritar-me com o amor. Eles não sabem que a lágrima que cai é improviso. Notam que estou inquieto mas ignoram o desespero. Tenho vontade de correr para nunca mais voltar, largar tudo o que é mecânico, marcado (mercado), sair desta prisão e correr, correr pra nunca mais voltar.
Aplausos pra que? Pra quem? Pra que o corpo serve? É antes um espetáculo aos olhos inchados e barulhentos que a meus pés, nada mais; o cenário cada vez maior, (eu) ruminando as tantas dúvidas de um coração sem pai, sem enxergar uma vida além dos bancos, sem viver além dos bancos – esvazio-me parcialmente em prol de nosso espetáculo, tudo pela Cia.!
Alguns já saem, impacientes.
O suor derrete a pintura que faltava, agora sou orgânico, erro como humano e me visto de André, de João, de Márcia, sou todos da primeira à última fila porque abandonei o simples personagem caricato. Sou qualquer um menos este ser aparentemente cansado, rindo agora muito, eu gosto de rir, gosto de pintar, de dançar, gosto de soltar pipa.
No fim eu paro e fico imóvel.
As cortinas fecham-se, finalmente.
Silêncio.


Maio de 2008

Wednesday, September 03, 2008

FevereiroMarço

- Marinheiros, volver! Volver! Voltem desgraçados, fugir pra onde? Quem, eu? Não!, tô falando deles: olha lá o bando de desertores! Não fazem idéia dos tormentos e perseguições que os esperam porque lá fora os homens nos odeiam, é perigoso, sabe? E eles vão indo sempre, não importa o que eu diga! Volver! Ei! Por que ninguém mais me escuta? Por que ninguém mais me respeita? Por acaso sou anêmico... alérgico... anencéfalo? Não, não sou porque se eu fosse tu não sorriria mais, eu arrancaria teus dentes só pra não ter mais o que mostrar. Eu gritaria: Que bela carranca, meu caro!, Que bela carranca!... O teu sorriso não sobrevive sem esses dentes, é belo mas inconsistente, é frágil. Ai, e que bota apertada essa minha, dê-me licença para sentar-me aqui e tirá-la. Pra mim não existe preocupação maior que meus pés, se eles sofrem é porque o mundo desmorona; e olhe em volta, que tristeza esse lugar. Uma miséria, se eu for eleito passo o trator por cima, seria antes um favor. Mas me diga uma coisa, viu passar por aqui uns tipos suspeitos? Gente mais ou menos delinquente? Ah!, muito obrigado. Vou indo, foi um prazer revê-lo. Mande um abraço a seu pai.

- Meu pai morreu. Minha mãe e minha prima morreram. Morreram vizinhos, cabras, bezerros, galinhas. Morreu a família toda.

- Ao menos o senhor sobrou.

- Quem sabe?

- O carteiro deve saber. Dizem que essa gente sabe de tudo. Quer cartas?

- Não, pra mim basta isso aqui.

- É humilde, que pena. Não suporto pessoas assim, são traiçoeiras e contaminam o meu ar. Ouvi falar de um que ofereceu a casa a pobres viajantes que vinham de longe, lá de Juazeiro. Eram dois rapazes e uma moça, aqui a foto deles. Pois bateram na porta desse tal humilde e entraram. E era até um homem respeitado no lugar, apesar de ser metido com poesia. Que crueldade fez esse homem, matou todos com golpes de enxada porque um dos miseráveis ousou falar bem dos modernistas: o homem odiava os modernistas! Tem gente pra tudo. O senhor não quer que eu durma aqui, quer?

- Não.

- Que bom. Vamos, dê-me a foto. Não vim até aqui pra passeios como o senhor deve estar pensando, não, procuro uns desertores, gente violenta que anda fardada... Meu Deus, que juventude é essa que não respeita mais uma farda? O que me espanta é essa sua indiferença, acorde homem! Eles são perigosos, fugiram das jaulas para cometerem crimes e se pegam você, matam! Matam, está me ouvindo?! E eu não vou estar aqui para salvá-lo, a minha aposentadoria deve sair no final do mês. Trabalho duro desde cedo, mereço descansar. Estarei tomando cerveja na beira de uma praia enquanto você é estrangulado, velho miserável! Dê-me um sinal, aponte pra quais lados eles foram, aqui a foto deles. Vamos, diga-me logo antes que... Eles foram pra lá? Obrigado, agradeço pela ajuda e pela conversa mas tenho que ir, anoitece rápido neste fim de mundo. Ora, o senhor pegou minhas botas? Estranho, tenho quase certeza de que não vim até aqui descalço. Bom, meus pés agradecem, olha como são limpos e delicados, diferentes dos seus. O senhor tem um pé muito feio, desculpe-me. Mas como aguenta viver aqui? Nunca pensou em fugir? É que é só nisso que penso, fugir. Nunca consegui ir tão longe, tinha medo do que eu poderia encontrar, coisa de jovem. E os jovens morrem cedo, não é? As marcas no seu rosto dizem que sim. Acho que me perdi, sinto-me confuso... Não quero nunca mais ver o seu rosto, esse rosto comum, rosto de bêbado, de açougueiro, rosto de carteiro. Quer cartas?

- Não.

- Que pena. Que pena. E chá, tem?

- Sim.

- Vá buscar. Lembrei de um amigo que sumiu só pra não ter que ir ao dentista. Sumiu pra sempre... O senhor mora aqui há muito tempo? Uns trinta anos?

- Desde de que nasci.

- Uns trinta anos?

- Sessenta

- Sei. Deve ter sido uma vida dura. Vou contar-lhe uma piada para animá-lo. "Certa vez um repórter perguntou a um escritor, desses mais novos, o que ele tinha a dizer diante das críticas que o seu último livro andava recebendo. O jovem respondeu: 'não sei, eu também não li o livro'”.

- Não teve graça.

- Vai ver não teve mesmo. Ora, as botas voltaram! Agora vou ter que calçá-las, que vida essa minha! Obrigado pelo chá, estava ótimo. Foi você mesmo quem fez? É que a gente aprende a desconfiar a essa altura da vida e vai conversando até se esquecer do tempo. Tenho meus afazeres, não sou um desocupado. O problema é que é bom demais falar, escrever também mas escrever às vezes cansa.E na medida em que os desejos físicos vão morrendo, aumenta a minha necessidade de conversar com os iguais. Vou indo, quando passar pela cidade faça o favor de me visitar, ficarei agradecido. É sempre bom receber os amigos, falar da juventude, de coisas velhas. Preciso conversar com alguém nos sábados. E esses dias que se parecem tanto com os outros... Meu Deus, vivemos em tempos difíceis. É fevereiro ou não?

- Talvez. Mas ele d-...

- Diga-me, como acabou o seu velho pai?

- Morreu.

- Então a peste também chegou por aqui. Tempos difíceis... Eu mesmo tenho vontade de largar tudo e ir embora, mas a farda está grudada no meu corpo. Ora essa!, eu já ia embora sem entregar-lhe esse telegrama, chegou hoje pela manhã e aqui está, acho que é de algum parente seu que teimou em não morrer.

- Todos morreram.

- Vamos, homem. Abre logo que eu quero ver.

- Não, agora não. Mais tarde.

- Tudo bem, eu espero. Eu espero.


2 de setembro de 2008

Tuesday, July 22, 2008

O Vendedor

__________aquele
_______que me encontrou
__________no mais
__________escuro
___________dos
_________corações
_____onde violinos tocam
_____com__seus___sons
____tristes_ umas__mãos
_____já___velhas___uns
_________cabelos
_______rudes
____achou
_____me
_____em
_completo
_abandono

Orações ao Alto

A forma / informa
no barulho
das armas (autor desconhecido)
Infantaria cresce
confundindo / belo hino
horror com gratidão pelas
Canduras. Já foi engraçado
ver-te-me no pior dos vermes
mastigando
repudindo (me?) só pra ficar mais perto de ti.

A forma / deforma
no submundo
paroquial (autor subjetivo)
Marcha que cresce
desce
sempre subindo.
vou-me também na correria das
Loucuras. Tornei-me também patalógico
mas curável, é bom escrever. Curável.

A forma / transforma
no absurdo
antropófago (autor apelativo)
Sintomas crescem
desaparecem
pele branca, pêlo encardido
mastigando
(me)
mas sempre em pé.

- Queimaram a farda
Queimaram a farda
Queimaram a farda

Foi o que ouví.
E entendí, tempos mais tardes, que nossa pátria morreu cedo demais.

Tuesday, March 18, 2008

Útero Vazio

Chove em mim como se fosse outono, como se nunca mais fosse parar. Chove sangue, sai a cor. Embriago-me com supertições e vejo o quão longe fui por simples medo, um frio que me fere por dentro e parece fazer chorar tudo o que toca (uma coluna fraturada aos poucos trincando todos os ossos): sou alguém.

Estamos em um navio de confissões que parece naufragar pelos tormentos que causam todos os sonhos mal acabados - cabeças que pesam como nuvens e a morte, só aquela morte que insiste em esconder-se nos meus medos, eu que me compreendo como a um túmulo.

Havia no céu o deserto e uma ponte, amparados por torrentes de ilusões quem sabe até infantis, empoeiradas e sublimes nos corações mais inflados e agnósticos, refletindo todo esse torpor com o qual moldei meu rosto após mais um disparo acidental, eu fecho os olhos mas nunca consigo sentir a pólvora.

Uma senhora percorre o pátil carregando no ombro o mesmo sino que, após noites insones, rebenta sempre a corda em uníssono. Tal cena me traz familiaridade e eu danço fingindo que a música é tocada para mim, eu tomo do cálice e aplaudo.

Saturday, January 05, 2008

A Filha de Gil

O grito fez desaparecer as imagens do que parecia ser o sono intranquilo da mulher, que só teve tempo de encontrar a toalha e correr ao quarto da filha. Os corredores escuros da casa envolviam a mulher que logo fez-se mulher na eterna madrugada das vontades - tantos gritos ouvíamos -, becos que escondem dos curiosos visitantes o interior, o desaconchegante interior da família. E trancam-se... Ela ouve o grito e acorda. O grito passeia pela mulher, chega ao banheiro onde dorme um corpo de pele enrugada e ainda só, ainda assim. Faz-se ouvir.


No quarto da menina alguém escapa pela janela e larga na pequena cama em formato de coração um punhal, lápis dos muros da menina. A menina corre para a mãe, abraça a mãe, chora.

- Ele?

Gil apanhou o punhal e seguiu pela estrada.

Chegou pelos fundos da casa e foi com terror que viu o homem no quintal, despido em carne ainda morta, desenho que virtua-se em espiral. Ele, ancorado numa árvore, masturbava-se. Ela empunhou a faca e avançou alguns passos, o rosto paralizado como que em transe: "para com isso", e ele chorava, pedia perdão, perdia tempo, o corpo suado que se movimentava lentamente pelo espaço, que umedecia com a ponta da língua os lábios sempre secos, que acariciava o peito. O rosto da menina aparecia no turbilhão das imagens e perfumes, sempre sozinha, delicada e sozinha no escuro beco que de noite era só silêncio... "Para!”

- Escuta Gil, eu não fiz nada com ela.

- Para!

- Eu te amo Gil!

A cólera tomou a mulher, porque esta correu até ele e enfiou-lhe a faca no peito, perfurando-o várias vezes, sentindo o gosto do sangue, e rindo até!, e enfiando a outra mão nos cortes que fazia, procurando, talvez, por algo - são abismos aqui? Desfigurou-lhe todo o corpo, cansou.

Jogou a faca para longe e se preparava para ir. Foi quando olhou para trás e viu que o pênis permanecia ereto. Ajoelhou-se ao lado do corpo e o pôs em sua boca. Chupou-o violentamente, até que o homem gritou.


dezembro de 2006