Thursday, December 09, 2010

fôssemos eternos, brecht,

durássemos infinitamente
e tudo permaneceria;
no entanto perecemos
porque nada é pra sempre.

Thursday, November 25, 2010

Intervenções em Mário de Sá-Carneiro

I

Vem, vem até mim José, me alcança enterrado no meio desses móveis, preso a esse outro eu, empoeirado vou ainda naufragando em minhas lembraças ou em alguns dos meus sintomas. É doença terminal, eu repetia, que me ampara nas horas solitárias, agride a arrogância seca. Que ampara. A gaveta que ora cobre minha cabeça tem dessas utilidades, é peso morto; é matéria de desagrado, e que vai clareando tudo, e tudo tão às mostras! Não entendo mais esses móveis apagados, me arranca daqui José, destrói os labirintos que há décadas nos separam, e que me esmagam, petrificam o peito. Jaz aqui, neste leito, Mário de Sá-Carneiro: embrutecido de suas escolhas, esquecido dos fins. E me vem um ardor que parece saudade, eu não sei, parece saudade mas a pele, nessas horas, descolore-se e a massa vai ficando amorfa; um cheiro de terra e champagne inunda-nos. O que eu quero, José, é só estender os braços... só isso, estender os braços. Me descança, então, e me abrasa com teus instintos uma única vez até que eu durma, até que eu decore, ou finja compreender, que o tempo não amaldiçoa quem comigo se perde. Vem, vem e te dou um único gole pra que o silêncio esteja entre nós e as palavras colem-se ao chão. José, meu crânio em tuas mãos, minhas flautas vértebras em tua boca, que o tempo não nos amaldiçoa. Que as intermitências de meu desejo, na agonia, na melodia que o trincar da taça imita, não desfavoreçam a áurea que agora nos ilumina. Eu quero essa luz, José. É um caminho inteiro a se perder e uma vida a renunciar. Mostro-te minhas mãos, aqui. E que além desses sufocos eu espero que saia uma palavra de ti, uma palavra e eu não demoro: vem, vem José, vem até mim.

II

A cada, a única manhã que cai, trôpega ou não, que cai; cai de minhas mão, que cai; vai de encontro ao chão e ensurdece os pedintes do estômago, os assaltantes de farrapos, as bronquites anônimas – eu, nesse ínterim, sigo de salto, mastigando a fruta proibida: cuspo para o lado, atento aos instintos alheios. É uma veste que cai, não importa, não importa que caia e leve consigo as minhas lembranças, a minha experiência, não importa mais que dentre as minhas cantatas escolhidas eu me aborreça com algumas: - Pois é o tempo, me sorriam, a mãe de todas as guerras, o berço de nossa hereditária miséria, o tempo. O tempo somos nós, nós que inventamos o tempo, fabulamos a métrica, os intervalos, fingimos a respeito do silêncio, eu dizia, fingimos a respeito do silêncio e dos homens. Embora contemos com os sussurros que não nos agridem, sussurros que, como massa, constroem o instante, a existência. Um ato comum e com isso eu queria dizer que os aplausos são mútuos, se existirem aplausos, assim como caso necessitemos das palavras nas quais pisamos maquinalmente, as palavras, elas que amenizavam as dores do início, do caminhar do espetáculo. São as dores do parto.


E eu repetia satisfeito: - Jaz aqui, homem feito, Mário de Sá-Carneiro!

Tuesday, November 23, 2010

Cântico das Mulukwasi

só os velhos machucam-se
com as indecisões do percurso, machucam-se
pra que nós nademos
à superfície.
um tronco vazio, o vazio que flutua
- cai no silêncio
vai carregar nossos medos, na névoa:
"nós nadaremos às nossas mães".

nós subiremos à superfície. já sentiu o sopro
suave em tua testa? é o silêncio quem navega,
nossos restos que contraem-se;
quem demora?

a saudade quebra o mantra,
só ouvi o canto cético das bruxas e senti
saudade
nós sentimos a força dos ventos
guiam-nos a precipícios
pra que nós nademos, dizem os velhos,
e busquemos nossas mães
nas margens escondidas dos rios.

Friday, September 03, 2010

uma estrela e a lua

res- piro/ as- sopro teu ar/ ar- quejo/ ex- plodo o luar

so- bejo/ cor- tejo o meu par

es- pirro/ as- sisto/ an- dejo/ um beijo/ me faço calar/ (cala-te)

in- sisto/ in- sisto/ in- sisto

in- cesto/ in- cesto

in- certo é meu par

me faço, me vejo

não, só esqueço que o que sinto por ti/ (cala-te)

que o que sinto por ti/ (cala-te)/ é apego


prados percorrem o enfermo que vai louco

atrás dos socos indescritíveis da mãe

que sangra na placenta a esperança da sombra perdida

ou só consumida no verde azul do céu


a bater-me forte o véu aberto/ abrir-me as veias/ me aperto

trazer do fim destas terras/ se é que têm fim/ minha razão adormecida

me aperto que faz calor/ e me dá sede

falo pra quem quiser ouvir/ me dá sede

falo pra quem quiser ouvir/ me dá sede esse calor

me aperto/ do céu aberto vim/ e vinde a mim/ acolhe-me/ adoça-me

tempera com teu calor o caldo de minha memória/ e cuida minhas feridas

acalenta minha dor

que vim do ventre/ vim do outro/ vinde a mim

me aperta que é quente/ me aperta


mendigo/ eles dor-mem-de-gor-ro

mendigo/ eles dor-mem-de-gor-ro


eu digo, mas não conta? o céu da minha boca que é azul/ (jura?)

ví hoje. e o teu?/ (não sei, nunca tive vontade de me ver)

faz bem. aquele que me achou no mais escuro dos corações

onde serenatas cantam despedidas

onde mãos frias tocam teus cabelos,

aquele achou-me no mais sincero abandono.

vi hoje, e o teu?/ o meu é da cor do mar

tão fundo o mar, tão distante

eu entro nele tímido pra colher as pérolas nos bolsos


meu amor é tudo tão vazio, tão disperso e negro como o sangue que machucaria teus lábios mais uma vez, pois me perdoa que eu não consigo mais sentar na tua frente, segurar um copo, olhar bem na tua cara e fingir interesse no que tu tem pra me dizer, Leonor, é tudo, tudo tão vazio, imerso, seco como meus pelos que procuravam em ti sossego, que esbarram nas cercas vazias de... é tão vazio meu amor... "a fonte paciente que deu de beber a tantas gerações vê com horror como esta última bebe-lhe a porção com expressão amarga", me dizia alguém... e é tão doce, Leonor, é tão pobre o palco, pobre a pintura que mendiga texto, que apaga meus passos porque é suja, é pobre a arte, o artista; faminta a plateia, faminto quem me disse que a fonte de beber que a tantas gerações acalentou vê com tristeza como nós a sorvemos com desprezo, meu amor, porque é suja, faminta a plateia.


ainda puxam-nos os tais fios de ouro

fios invisíveis que, no entanto, arrancam-nos fora a pele

são fios de ouro, soergue-nos da poeira

da poeira que mancha, da miséria que marca

cemitérios brotam nas praças

lá eu me vejo

lá eu me espelho que é de carbono o meu espírito, é de carbono

e me dói, me dói e é normal Leonor

me aperta

“ainda abertas estão as nossas veias”, gritam os mendigos

que carregam nos ombros os nossos pesos

que esperam cansados os nossos beijos

sobejos

abertas estão ainda, abertas

me aperta

eles gritam, me aperta

as portas, as costas nossas de cada dia

gritam os medigos!

e eu vejo

não, só esqueço que o que sinto por mim (shiiiiiiiii...)

que o que sinto por mim (shiiiiiiiiiii...)/ é segredo

nasci aqui, aqui me criei antes das tempestades de terra

antes da escuridão

e que tempos são esses em que falar de árvores e de homens é quase um crime?

por que silenciar-se se os mendigos gritam?

se murmuram nos meus sonos desconfortáveis?

eu quero ouvir! eu quero ouvir-me!

quero as palavras proibidas ecoando nas paredes

e que rachem as paredes, perfurem o tablado

e quero minhas palavras nas bocas de outros homens

e que eu repita a voz dos que consomem

dos que gritam:


ainda abertas estão as nossas veias/ o sangue espalha-se por estas terras sem fim

caudalosos rios lavam os brincos de poeira

carajás, carajás

(gritam os sulcos da terra)

é longe o campo, pobre a serventia/ arrastam o brilho dos olhos desse alguém

calos brotam no peito da menina

carajás, carajás

ouvem-se gritos/ ouvem-se tiros/ ouvem-se mentiras

carajás, carajás

carajás, carajás


assim eles retrabalham o tempo

o tempo que nos queima, amigo

o tempo

o tempo vazio, ainda

ainda que nos seja entregue

a vida que nos impedem, amigo

a vida

ainda assim o tempo vai nos ficar

nos vai deixar calados, de pé

de pé sob a terra

que é tempo de calar-se

amigos, de pé

o tempo

ainda, ainda somos nós

tiros acertam-nos o coração

porque somos só isso, amigo

somos um só

que ergue o punho (de pé, amigos!)

que grita

"as nossas veias ainda estão abertas"

porque somos um só

sós, amigos

amigos, sós


"Que os ventos benfazejos que açoitam as velas da rústica embarcação soprem sempre para nós, dando-nos coragem, dando-nos entusiasmo. E assim venceremos"

Saturday, August 14, 2010

[suicídio durkheimiano]

mesma consciência processual
inteira em fraturas
a musculatura
podre acre-lhe, em sopa
masmorra a cadência
caricatural, então
então eu não sei - sou mais que anômico,
morro pela vontade - a derrota
me traz o sal na boca
me faz cuspir
olhar meus joelhos
e ainda respirar fundo

Saturday, July 17, 2010

monólito uruguaio

é vazio o copo que cai insone da cama
e com a ponta dos dedos
arrisca
um risco fundo no asfalto, e que
agora é aço
mas que se quebra com um sopro e
é vazio
é vazio o corpo que cola-se ao teu
que finge que cai
que sobra, grosseiramente sobra
nas paredes de meu ego
apodera-se, o outro, afoga o faro
em meus cabelos, inunda o ambiente
com o hálito, sobeja meus lençóis mas que
escorrega em minhas manchas porque
é anônimo o corpo que diz ser meu,
cai dormente
cai
inerte
descontrói-se
junta-se
e já não é o mesmo
o rosto dele
é vazio
mas é saudade o que eu sinto

Thursday, April 01, 2010

Pontes amanhã

Ainda cores incômodas incendeiam meus pés já vermelhos e torrados com o pouco do veneno solar disponível ao meu estrato social. Logo ontem que a chuva negra levou meus sapatos sem que eu pedisse (e eu queria) essa imposição, sorria com o muro aberto e escroto no qual me batia e me perdia.
Amanhã uma coluna ergue-se nos nossos corpos colados -mais parece cercas-, e temos a ilusão de que subimos sem saber que nos pisam e nos usam como escadas. As pontes de amanhã não mais separarão homens. Um barulho irritante faz meu peito voltar a bater.

Friday, January 22, 2010

Sangue de Malcolm X

O quente desprende-se de meu corpo
mas só aos poucos
sinto
a gravidade da
dormência que causa a bala manchada
com teu sangue. A pele absorve
com dificuldade o outro
que funde-se a mim.

Mas só aos poucos me sinto morrer.

Bebo um pouco do sangue que
corre pavoroso e sinto
um gosto metálico
que não silencia
que jamais silenciará.

Sunday, January 17, 2010

Mário de Sá

O sorriso de um corpo quase morto, sopro que nasce no estreito peito, singular, angular, embriagado falo eu de coisas passadas; erguendo meu crânio, soprando minhas vértebras, como dizia o jovem poeta. A sede que me impede de sorrir é saciada com rapidez e a música nunca me foi tão desnecessária... E é silêncio .Quero me afogar nestas trevas.


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era um labirinto
E hoje, quando eu me sinto,
Eu sinto saudades...

Passei pela minha vida
Como um astro doido a sonhar
E na ânsia de ultrapassar-me nem dei por mim.

Sim, porque pra mim é sempre ontem
Não existe o hoje nem o amanhã
O tempo que aos outros foge
Cai em mim feito chuva...

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas tortas que projeto
Se me colo a um espelho erro
Não me acho no meu reflexo...

E alguém bate na porta.


Quem é? Ah! Ora ora!, se não é o meu amigo José Araújo! Quem diria que finalmente apareceu, todos já o esperavam. Olhe, não sou muito de suportar atrasos mas hoje não imponho restrições, o espetáculo começa quando todos os meus amigos chegam, e faço questão de recomeçá-lo toda vez que um novo ente querido vier a mim, afinal, hoje é um dia especial, quero comemorar minha vida. Vamos, entre e fique à vontade.

Fico alguns minutos em silêncio, minutos provocantes. Não consigo esconder a minha sensação de desconforto, nisso sou péssimo ator.

Não, não é só a cabeça que dói, você bem sabe para que veio: assistir-me. E isso implica em não atrapalhar o ator em sua performace, não importa o que ele faça. Então não adianta me pedir para que eu volte atrás porque você me conhece. Apenas sente, espere e observe, meu caro amigo. O espetáculo tem que continuar.
Um brinde ao arseniato de estricnina! Um beijo na eternidade... e um olhar sobre mim mesmo. Eu cada vez mais me convenço de que não saberei resistir ao temporal desfeito, à vida, onde nunca terei lugar... Em suma, não creio em mim nem no meu curso nem no meu futuro! E sofro ainda também, meu querido amigo, por coisas mais estranhas e requintadas: pelas coisas que não foram.

Quando eu morrer que batam as latas
Rompam aos saltos e aos pinotes
Façam estalar no ar chicotes
Chamem palhaços e acrobatas
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à anda-luz
A um morto nada se recusa
Eu quero por força ir de burro...

Pagando pelos pecados que cometi. Aí você me dá um sorriso irônico, cruel, e pergunta: “pecados?”. É já uma outra vida, dá até um livro coberto de imagens: satíricas, metafóricas... eróticas... Outra vida, e nisso não há dúvidas. Ando mais absorvido nas minhas inquietações, hoje pergunto mais antes de agir, perguntas feitas sobretudo a alguém que se enganou durante todo o ato: Mário de Sá-Carneiro.
Mas eu já amei. Quem sabe continuo amando mesmo sendo já tarde, mesmo sendo segunda-feira. Quem sabe... me visto com tantos medos que às vezes a mentira é aplaudida. E tão necessária!... Tão necessária mas não importa, a este suposto ser eu ofereço um último soneto.

Que rosas fugitivas foste, ali
Requeriam-te os tapetes, e vieste
Se me dói hoje o bem que me fizeste
É justo, porque muito te devi
Em que sedas de afagos me envolvi
Quando entraste nas tardes em que apareceste
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar que remordi
Pensei que fosse meu o teu cansaço
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, de tão esbelta, se curvava
E fugiste... que importa?
Que importa se deixaste
A lembrança violeta que animaste
Onde a minha saudade
A cor se trava?

Sim, que me importa a dor? Pra isso existe uma taça! O que me faz correr e voltar... uma peregrinação sem fim, eu não sei, mas o que me faz correr e voltar é um sentimento de falta intríseco ao homem. A falta. E o que realmente importa pra mim é tudo o que me faz sonhar.

Por um tempo pensei que isso tudo era só narcisismo, fruto típico de um ego tão envaidecido e por que não precoce?... Hoje enxergo os fatos de uma maneira menos presa a questões materiais ou mesmo morais, apesar de sentir o mesmo temor que me persegue a anos. Arthur Schopenhauer, filósofo alemão, disse que não é a morte quem sempre nos ronda; não, não é morte porque todos nós estamos condenados á vida: viver é sofrer, isso eu repito todos os dias. Soa pessimista, talvez, mas não há como não se render a tanta dor e miséria que nos roem a perna, medos que não nos deixam dormir. Sim, porque a dor, a miséria e a desesperança me atacaram um dia, viví de meu sangue. Assisti a sonhos se desmancharem no vazio. E é tão fácil, são frágeis, um instante só e acaba.

Acaba. E eu aqui, tomando champanhe com veneno, olha só! Veneno... e não é nem por riqueza não, sou até mais pobre que outrora, choro até mais que antes. O mundo é mesmo sarcástico... olha aquela estrela e diz se ainda brilha, se já não morreu há muito tempo? É o que sinto ao olhar-me num espelho. E esses sorrisos tão falsos que encontro nas ruas, também já não morreram a décadas? Quem dirá? Não eu.

Sou ainda mais infeliz porque tudo é tão vazio como eu: uma carapaça ainda suja de sangue. Hum... belo título! Mas agora eu só quero o silêncio... e o último gole desta taça.

Fios de ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira
Cada um para seu fim
Cada um para seu norte
Ai que saudade da morte...
Quero dormir... acordar...
Pra que essa grandeza?
Pra que me sonha a realeza
Se a não posso transmigrar?
Ai que saudade da morte
Vontade de dormir...
Vontade de dormir...


Escrito em junho de 2008