Thursday, November 25, 2010

Intervenções em Mário de Sá-Carneiro

I

Vem, vem até mim José, me alcança enterrado no meio desses móveis, preso a esse outro eu, empoeirado vou ainda naufragando em minhas lembraças ou em alguns dos meus sintomas. É doença terminal, eu repetia, que me ampara nas horas solitárias, agride a arrogância seca. Que ampara. A gaveta que ora cobre minha cabeça tem dessas utilidades, é peso morto; é matéria de desagrado, e que vai clareando tudo, e tudo tão às mostras! Não entendo mais esses móveis apagados, me arranca daqui José, destrói os labirintos que há décadas nos separam, e que me esmagam, petrificam o peito. Jaz aqui, neste leito, Mário de Sá-Carneiro: embrutecido de suas escolhas, esquecido dos fins. E me vem um ardor que parece saudade, eu não sei, parece saudade mas a pele, nessas horas, descolore-se e a massa vai ficando amorfa; um cheiro de terra e champagne inunda-nos. O que eu quero, José, é só estender os braços... só isso, estender os braços. Me descança, então, e me abrasa com teus instintos uma única vez até que eu durma, até que eu decore, ou finja compreender, que o tempo não amaldiçoa quem comigo se perde. Vem, vem e te dou um único gole pra que o silêncio esteja entre nós e as palavras colem-se ao chão. José, meu crânio em tuas mãos, minhas flautas vértebras em tua boca, que o tempo não nos amaldiçoa. Que as intermitências de meu desejo, na agonia, na melodia que o trincar da taça imita, não desfavoreçam a áurea que agora nos ilumina. Eu quero essa luz, José. É um caminho inteiro a se perder e uma vida a renunciar. Mostro-te minhas mãos, aqui. E que além desses sufocos eu espero que saia uma palavra de ti, uma palavra e eu não demoro: vem, vem José, vem até mim.

II

A cada, a única manhã que cai, trôpega ou não, que cai; cai de minhas mão, que cai; vai de encontro ao chão e ensurdece os pedintes do estômago, os assaltantes de farrapos, as bronquites anônimas – eu, nesse ínterim, sigo de salto, mastigando a fruta proibida: cuspo para o lado, atento aos instintos alheios. É uma veste que cai, não importa, não importa que caia e leve consigo as minhas lembranças, a minha experiência, não importa mais que dentre as minhas cantatas escolhidas eu me aborreça com algumas: - Pois é o tempo, me sorriam, a mãe de todas as guerras, o berço de nossa hereditária miséria, o tempo. O tempo somos nós, nós que inventamos o tempo, fabulamos a métrica, os intervalos, fingimos a respeito do silêncio, eu dizia, fingimos a respeito do silêncio e dos homens. Embora contemos com os sussurros que não nos agridem, sussurros que, como massa, constroem o instante, a existência. Um ato comum e com isso eu queria dizer que os aplausos são mútuos, se existirem aplausos, assim como caso necessitemos das palavras nas quais pisamos maquinalmente, as palavras, elas que amenizavam as dores do início, do caminhar do espetáculo. São as dores do parto.


E eu repetia satisfeito: - Jaz aqui, homem feito, Mário de Sá-Carneiro!

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